terça-feira, setembro 26, 2006

histórias de loucuras

"As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme." Gilles Deleuze in: O Abecedário de Gilles Deleuze por Bernardo Rieux


Recebi isso de uma amiga. Nem é minha amiga de fato, mas amiga, mais que isso talvez, de longa data, do Juliano. Não quero cavocar nisso. Engraçado como o nome dela me é familiar. Márcia. A Márcia, minha amiga-irmã me joga umas coisas soltas que eu passo dias pensando, meses. Nem sempre elas fazem sentido em algum momento. Mas devem fazer um dia. Vai ver elas as palavras marcianas caiam em mim como num poço sem fim, vão escurecendo, silenciando, até que um dia toquem aquela água sem cor, sem nada... e faça aneizinhos nela... criando, qualquer coisa.

Achei interessante como essa citação veio num dia tão cheio de minhocações (não me separo delas mesmo...) sobre o amor. Me permitiu ver o Nosso num charme tão nosso. Tão único, de nós dois. Me vejo louca, meio sem charme, reconheço, mas louca. Esse papo com as minhocas, comigo, com as pessoas num silêncio num café. Numa leitura de jornal. Nas conversas com os autores dos livros que leio.

Vi o Juliano ali, na loucura dele. Tão charmoso nisso. Achei ele um charme desde o dia que nos conhecemos. Fazia, na ocasião, o tipo FFLCH padrão, meio descolado, chegado recentemente do estrangeiro, esses países cult: NY, Porto Rico, México... um moço cheio de histórias. Que tinha feito História. Na mesma faculdade que eu. Ainda bem que com algumas boas diferenças de gerações. Olhei. Não me agradou na hora. Era festa da prima dele, a Tereza. Dei um super fora dizendo a ela "quem é esse palhaço que não para de me olhar?!" A resposta dela, curta de direta. Sempre: "meu primo favorito, vem que eu eu te apresento". Pãtz...

Rodiei o lugar perto da mesa dele. Sempre desconfiada. Mas não menos curiosa. Nos olhamos diversas vezes aquela noite. A Márcia estava lá. Recém-separada. O Vinícius, meu cão de guarda na ocasião - o único que teve paciência de aguentar a minha chatice depressiva de namoro quase terminado. Chovia muito. Era junho... Frio.

Rodiei mais um pouquinho. Conversei com o garçom, um fofo, muito tempo no balcão. Eu adoro conversar com garçons. Acabei me sentando depois na mesa perto de alguns colegas. Não demorou muito o moço chegou, com a tia Márcia (a madrinha dele, mãe da Tereza) ao lado, meio trilili. Me assustei com o início de papo. Não dei muita trela, afinal, ser difícil faz parte da arte de ficar sem graça perto de uma pessoa. De repente começamos a conversar. Só nós dois. A mesa parecia estar distante demais da gente. Fernando Pessoa, o tempo fora do país, a volta, a busca, o desassossego. Tinha tanta conversa ali.

Lá pelas tantas a, na hora de ir embora a tia Márcia larga a seguinte frase: "puxa, vocês podiam se conhecer mais. Vocês tem que namorar, tem tudo a ver!". Momentos de pânico. "Como assim?" era a única pergunta que eu podia formular. Qualquer outra coisa era complexo demais pra mim. Desnorteei. Me virei para o Vinícius em busca de um socorro amigo. Ele estava longe demais. A Tereza deu uma bronca básica na mãe, o Juliano riu - era um "sim, é verdade" e eu corei... "é, pode ser que isso dê certo mesmo um dia, mas nem pensar agora que eu sou uma mulher enrolada e depressiva", explicava pra mim mesma.

E todos os dias seguintes foram um (des)padrão de loucurinhas. Sempre uma Márcia presente. A minha, a dele nos emails. A tia Márcia em ambos. No dia seguinte a que nos beijamos a primeira vez, a Márcia testemunhou a minha aflição de "isso não pode estar mesmo acontecendo". A Márcia dele, no dia em que contava a minha triste história de final de namoro-epopéic- longo, escrevia sobre ser padrinho do filho, desenvolvendo argumentos e discussões sobre os vínculos que as pessoas tem entre si. A tia Márcia, apostando e perguntando da gente pra Tereza.

Engraçado como essas marcianas aparecem presentemente na nossa vida. Nessas horas misteriosas. Acho que ele nunca se deu conta dessas convergências cósmicas marcianas. Não importa. O mistério é parte disso. Encanta. Eu não vejo nenhuma das três, há muitos meses. Sinto falta, sobretudo da minha Márcia (eu a amo tanto que já me apossei!) das loucuras que a gente vivia e fazia. Das risadas tão tristes da gente naqueles dias.

Mas a vida reserva outras loucuras repentinas... que vão se desenlaçando e se enredando. Dá um tecido tão bonito... É só ter paciência de costurar.

E aquele estereótipo de loucura charmosa do Juliano deixou lugar para as idiossincrasias mais gostosas da gente. Saiu a FFLCH descolada e estrangeira. Entrou a homem desafiador, cheio de sentimentos em todo o lugar. Saiu a moça curiosa e desconfiada. Entrou a Thais que eu ainda descubro por meio dele. Continua louca. Não sei se mais ou menos charmosa. (nuca perguntei...)Mas louqueando bastante, com certa frequência. E buscamos os nossos pontos de demência. As loucuras que só a convivência pode apresentar: manias, birras, infantilidades, egoísmos, chatices orgulhosas. Todas demências humanas, descortinadas , desnudadas. Casadas. Enamoradas.

Não sei se o Foucault pensou nessa possibilidade de História da Loucura. É tão mais charmosa.

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