domingo, julho 30, 2006

desinfeccionando

A dor está onde estão as feridas...

Essa frase é de um email do Juliano em meados de 2004. Nunca me esqueci dela por revelar uma obviedade que a dor não me permitia ver. Nem mesmo tratar dessa dilaceração interior. E doía tanto que era difícil demais ter coragem de olhar pra ela, reconhecer a dor, o tamanho da ferida.

Há meses eu convivo com uma dor aqui no peito. Profunda, intensa, mas só minha. Dessas que incomodam o tempo todo porque nunca deixam você em paz, que se parece com as coceiras da moriçocas em dias de calor na mata. Fica zunindo dentro de você, coçando. Ardendo. Porque você não quer parar (nem consegue!) de coçar, nem que seja só nas bordinhas das mordidas só pra aliviar. É tentador porque quanto mais a gente se aproxima das bordinhas, mais o dedo se estica, a unha chega... e quando você por fim é avisado pelo corpo pelo aumento da dor, é tarde. Já está sangrando. Aí te dá aquele desespero de ficar limpando o sangue. Secando. Mas a vontade de cutucar ainda não desapareceu - depois vem a casquinha. E o ciclo recomeça.

O coração da gente também é picado por moriçocas bem traquinas. Algumas maiores, outras pequeninhas, mas que incomodam igual. Quando você para e olha, procurando devagarzinho, se dá conta que a pele já está toda embolotadinha. Em relevo. E em vermelho. Mas se coração é mesmo vermelho o perigo de se olhar sem atenção está aí. A gente pode não perceber que ele foi mordido. E se alguém esbarra ali nas beiradas... você sente aquela vontade irresistível de coçar. E aí já era.

Mas eu falava sobre a dor... Há meses ela vem aqui comigo. Uma companheirinha insistente, mais que as minhocas. As minhocas vão e voltam, mas a dor fica. Outro dia pensei se não rolava uma coisa meio sádica das minhocas: quando a dor quer atenção e eu não dou elas vêm fazer companhia. O encontro é barulhento demais e eu acabo dando atenção sempre às minhocas (a maioria vence sempre nesse caso!). Por isso a dor fica. Aqui, em silêncio, esperando que eu sacie a sua carência.

Eu não tinha me dado conta disso até hoje cedo. Duas noites atrás eu levei as minhocas pra passear numa noite de chuva. Tomamos banho, ouvimos muito rock and roll. Saímos de fininho para ninguém ouvir. Devia ser umas duas da madrugada. Já disse antes que elas adoram a noite. Não era uma noite bonita, chovia muito, dissipando o calorão dos últimos dias. Andamos pela cidade. Mostrei para elas os lugares que eu gostava. Estava meio embaçado o vidro do carro, mas deu certo. Dançamos loucamente o Yes e cantamos tudo o que tínhamos direito. Por mais estranho que pareça senti carinho por elas naquele instante. Havia uma poesia naquela companhia que tentava desacompanhar. Um exorcismo doído de fazer - eu quase quis que elas ficassem.

Depois de ouvir o Owner of a lonely heart parei o carro. Tinha tido uma idéia - mas não podia compartilhar com elas. "Que tal a gente tomar um chá?" Era o Franz Café. Cheio na madrugada da sexta para o sábado. Muita gente com maquiagem borrada, cara de quase-ressaca. Foi engraçado entrar com elas naquele ambiente: eu tentei dar uma ajeitada no cabelo, uns beliscões nas bochechas para disfarçar o vermelhão nos olhos. Entramos. A luz me incomodava. Aquele barulho de gente querendo falar mais alto que si mesmo...

Sentei no balcão. Elas foram ver o espaço e disseram que voltariam em seguida. Aproveitei para fazer o pedido. "Um chá de camomila, por favor. Quente e forte." Quando elas voltaram já estava tomando o meu. Elas quiseram provar. Ficamos ali conversando e disse a elas que adorava passear de noite, mas que sentia falta de sono gostoso. Sem diálogos. Elas se olharam. Começaram a reclamar que a luz incomodava (a gente tinha algumas afinidades...) Ignorei. Continuei tomando chá. Elas provaram mais um golinho. A gente começou a ficar em silêncio depois de uns quatro. Não era sono não - era um silêncio cúmplice.

Ainda não entendi o silêncio daquela noite. Voltei pra casa cantando com elas. A gente já estava rindo, como se estivéssemos de pilequinho. Coloquei elas na cama. Cobri direitinho. Fui dormir e percebi então que a dor não tinha nem tomado chá, nem passeado, mas ficara ali no canto, se sentindo deslocada. Era tarde, eu tentei dormir. Apesar da dor.

O mais engraçado é que a dor consegue despertar outras dorezinhas menores... fiquei com culpa de não ter dado atenção a ela. Aí me dei conta que nunca tinha feito - nem pensado - nisso. Mais remorço... doía!

Na manhã seguinte ela tinha beliscado todo o meu coração. Pura vingança infantil. Birra. Eu mal podia respirar. Andava pela casa curvada. Um mau-humor que só ela pode causar. Comecei a me irritar. Esbravejei. Vomitei nela. Xinguei de todos os nomes feios que lembrava (alguns eu criei na hora!). Bati. E ela foi mais forte... me derrubou onde eu era mais frágil, permitiu que eu magoasse quem mais amo. Foi então que eu fiquei enfurecida. Mas vencida. Derrotada pela culpa e pelo remorso - uma dor maior ainda.

Lembrei depois de passear pelas lágrimas de uma conversa amorosa outro dia sobre o Othello de Shakespeare. Ele mata a amada por não acolher a sua dor. Nem era ciúmes. Era ignorância do que fazer quando a dor vem. Por deixá-la no canto, gritando, numa atitude prepotente de (pseudo)vencedor. Fiquei com medo de ficar matando as pessoas aos pouquinhos e deixar tudo em agonia, principalmente a mim. Abracei Othello, abracei a dor. Senti compaixão dos dois, de mim. Desisti de lutar. Reconheci as mordidas no coração, cocei um poquinho e percebi o tamanho da infecção - eram mordidas em cima de mordidas, com pus, com sangue. Aquilo fedia, vazava. O remédio não estava aqui fora (ou aqui em cima - na cabeça) mas lá dentro mesmo. Era só ouvir. Era só ver as feridas, tratar delas. Deixar a dor falar, se queixar, te enfraquecer, e finalmente depois, te deixar.

Hoje cedo quando comecei o trabalho as minhocas resolveram participar Senti mais conceiras e me lembrei da visão da noite anterior. Não podia. E mordiscaram mais. E lembrei de novo do Othello. Saí correndo. Pedi socorro, pedi um abraço. Antes que as feridas se abrissem com as coceiras. E encontrei o amor ali, choroso, silencioso. Que abraço forte, quente. E a janela do quarto daqui de dentro foi se abrindo devagar... as lágrimas começaram a lavar a infecção, a inflamação vermelha amarela deixaram uma corzinha rosada bonita, serena. E as feridas doram encontrando a porta de saída, as minhocas se dissiparam pela luz do dia... e a dor... ah, foi amada. E que bom poder se deixar ser amada...

3 comentários:

Anônimo disse...

Pra Eu Parar de Me Doer
Milton Nascimento

Mais que a dor do amor
Viver a dor
Me doeu
Eu quero mesmo é ser feliz
Amor, amor
Quem não semear
Não vai colher
Ai de quem
É um e nunca será dois
Por não
Saber
Quem irá me valer?
São pessoas, é a caminhada
Quem irá me valer?
São meus sonhos no pó da estra....da
Quem irá me valer
É o sorriso que guardo comigo
Quem irá me valer?


Oi Beibe achei legal o seu BLOG. Aproveito para deixar uma letra de música que me define bastante.
Abraço.

juliano.

Anônimo disse...

Pra Eu Parar de Me Doer
Milton Nascimento
Mais que a dor do amor
Viver a dor
Me doeu
Eu quero mesmo é ser feliz
Amor, amor
Quem não semear
Não vai colher
Ai de quem
É um e nunca será dois
Por não
Saber
Quem irá me valer?
São pessoas, é a caminhada
Quem irá me valer?
São meus sonhos no pó da estra....da
Quem irá me valer
É o sorriso que guardo comigo
Quem irá me valer?
É o segredo de fazer amigos..

Mandei a letra de novo pois estava faltando a última frase que é muito importante.

Ju

Anônimo disse...

Ei, desinfeccionar é uma atitude sadia. Mas a infecção é algo aproveitável, é um aviso do corpo, é uma maneira de buscar o remédio!
Quanto às minhocas, já vi muitas delas serem isca para belos peixes. Basta esperar!
Márcia