domingo, agosto 27, 2006

epifanias de bom-humor

Ainda falando sobre Deus... estranha motivação essa. Misteriosa, ao menos.

Ontem na viagem de volta de Campinas, com a Dani no carro e uma conversa super mulher - como sempre com ela - e cultivando uma amizade tão especial na minha vida, me dei conta que Deus é um cara de bom-humor. E pudera. Criar todo o Universo, como dizem, aguentar uma lista de mais de 6 bilhões de pedintes (fora os outros habitantes de sei lá quantos mundos que devem pedir pra caramba também!), de gente prometendo isso ou aquilo (como se ele precisasse da nossa garantia) e uma lista infindável de reclamações (essa é parte mais chata de ser Deus, penso).

Há dois anos atrás, não me lembro bem quando, na escola que trabalhava tive uma revelação desse bom-humor do Criador. Essas epifanias palhacitas sempre aconteciam na sala dos professores, cujos protagonistas eram a dupla inesquecível Fábio e Márcia, com o o elenco coadjuvante Sônia e William. O quarteto fantástico.

Mas a continuação da epifania veio numa apresentação da então 6a. série. Um conjunto de apresentações ligadas à aula de português (coisas da Márcia) com cenas das crônicas do Fernando Veríssimo. Eu não me lembro de nenhuma delas, mas lembro dos alunos. Não preciso repetir que essa foi a minha turma favorita. Um dia escrevo sobre ela. Recordo bem dos personagens... a Priscila, uma boneca, fez o papel de uma mulher à beira de um ataque de nervos. Nunca tinha visto a Priscilinha gritar e esbravejar daquele jeito. Depois pensei que era melhor cuidar mais da sala de aula. A Tamira fez o São Pedro. Nunca pensei que São Pedro pudesse ser daquele jeito. Fazia o tipo do velho tímido, mas sabido. Usava óculos.

Mas a revelação do dia foi ver Deus. Isso mesmo. Foi a primeira vez que o vi de fato, encarnado num corpinho de um aluno traquina. Não poderia ser diferente. Caio. Esse era Deus. Nunca vi uma imagem tão fiel do Criador - um jeito malandro, amoroso, mas esperto demais ao identificar as nossas idiossincrasias. E foi demais!

Não recordo do diálogo - isso de fato não era importante - mas lembro muitíssimo bem da atuação - divina - do Caio. Deus usava óculos e, um ano antes na 5a. série, um topete lindo! Estava deixando o cabelo crescer (exatamente como eu imaginava Deus, de cabelão e óculos!) e tinha um sorriso meio maroto do tipo eu sei exatamente o que você fez e o que vai me pedir! Bastava. Ri muito naquela manhã e depois daquilo as minhas aulas na sala nunca mais foram as mesmas. Eu me divertia dizendo a todos que dava aulas de História pra Deus. Putz! Isso é mais que sucesso profissional. Imaginem, contar ao mais velho dos espectadores, conjecturar, tentar entender e explicar, tudo, tudo o que ele tinha visto e, provavelmente, entendido, ajudado...

Quando as dúvidas surgiam na sala - pra mim e para os alunos - não titubeava: um momentinho pessoal... Deus o que aconteceu mesmo? Pode nos explicar isso melhor, por favor? OS humanos não deixaram evidências muito clara... As aulas tomaram um caráter muito mais divertido, misterioso, e acreditem, mais sério também. Era como se todo mundo ali, de algum modo, entendesso o mistério da divina presença, manifestada no Caio. O espaço sagrado da sala de aula tomou conta de todos.

Em poucos dias todos se referiam ao Caio, ao menos na minha aula, como Deus, e ele adorou. Um poder que ele nunca imaginou que pudesse ter. E o modo como ele exercia isso era o mais divertido. Em dias de prova, por exemplo, eu dizia aos alunos que era melhor estudar, e que não adiantava rezar, afinal, Deus estava ocupado - nessa situação específica, fazendo a minha prova. E se ele não tirasse um 10,0 como era o caso, respondia É professora, Deus anda ocupado e não teve chance de estudar. Ok. Deus sempre tinha razão mesmo. Não havia como argumentar.

Eu me divertia pensando na minhas delirantes imagniações de conversar com Deus. Levá-lo pra tomar um café, etc. Era muito melhor. Eu dava aula - e de História - pra ele. Sensacional. A presença divina do Caio tomou conta da gente. E um mistério ali se consagrou.

Eu senti muito de não ter ficado com essa turma até esse ano, até a 8a. série. Sinto saudades das risadas, do modo como eles me desafiavam. Como me faziam gostar ainda mais do que eu fazia. Do modo mágico como as aulas aconteciam. Além dos risos (intermináveis... a diretora certamente achava que não dava aula, mas que brincava com eles. Depois fiquei pensando porque o aprender tem que ser, para a maior parte das pessoas, um evento tão sisudo e doloroso) e das discussões que fariam inveja a professores universitários gabaritados, essa classe tinha algo que eu nunca mais deixei dormir - o aprendizado do humano, do perdão, do amadurecimento, da dor, da responsabilidade. Foram eles as testemunhas da minha mudança maior. Do meu fim de relacionamento com o Fernando, tão dolorido. Do meu apaixonar-se pelo Juliano, tão transformador; do meu acidente de carro; dos medos, dos desafios. E da perda deles também.

Engraçado que uma semana antes de ser demitida dessa escola eu havia passado o Sociedade dos Poetas Mortos. A classe, no final do filme disse Olha, a gente sobe na cadeira por você, Thais. Ri. De fato subiram, de outro modo, mas me senti o próprio Sr. Keating ali. Sem pieguices.
Na semana que fui demitida recebi um email de Deus. Ele lamentava a minha saída, mas me disse pra não me preocupar, afinal Deus estava por perto pra ajudar. E para resolver. O Caio me reservou presentes incríveis para 2006. Eu nem imaginava que ele estaria, ainda, tão presente. Pelos seus pais, pela saudade dele. Pelos colegas que vieram me visitar. Pelos recados no orkut e por outros emails.

Deus sublinhou na minha vida e na (curta) trajetória pedagógica, sua marca. Leve, bem-humorada. Feliz. E, claro, bem traquina. Num recado (nada)subliminar de que não adiantava bancar a esperta com ele. Afinal, mesmo ocupado, é Deus.

Saudade Caio, e de todas as epifanias da sua classe.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa que história sublime, tornei-me um pouco mais humana ao ler suas palavras. Gostaria de refletir sobre a minha profissão dessa forma que você o fez.
Um grande beijo. Saudades.