terça-feira, agosto 08, 2006

terapeutizando

Charles Casemiro, meu professor de literatura do ginásio, escreveu pra mim outro dia falando que hoje em dia se fazem todas as pias possíveis: terapia, fisioterapia, etc.

Hoje eu passei o dia procurando a minha pia. Qualquer uma que servisse pra escarrar as coisas azedas da alma. Não achei; trabalho da minhocas talvez... lá pelas tantas usei o telelfone mesmo: liguei pra terapeuta. Que remédio!

O Julio Aquino, meu professor da F. Educação disse repetidamente "não façam análise, os psicólogos são chatos. E doidos". Verdade seja dita, acho difícil não ser psicólogo então, a quantidade de chatos e doidos no mundo aumenta consideravelmente nos últimos anos. Exponencialmente.

Esses dois personagens na minha vida - o Julio e o Charles - tem coisas muito antagônicas, mas complementares. Charles era o sonho, a realização do impossível na minha mente adolescente (até hoje quando falo com ele me sinto assim, como se não tivesse crescido, ou talvez eu tenha cristalizado as imagens da época?); O Julio, a materialização, concretíssima do possível, do real, no impossível. Foram - e ainda são - uma inspiração constante, silenciosa. Muito diferente do Ulpiano, por exemplo, que me inspira intelectualmente, apenas. De outro modo ele me traz coisas mais metodológicas: como ler, como não ensinar....

Ontem foi feita uma homenagem a ele - o Ulpiano - no Dpto de História. 70 anos vividos, uns 40 e algo dedicados à academia. Eu quis ir. Pensei mesmo; mas era rodízio do carro. (ou essa é uma desculpa convincente pra mim mesma? hmmm...) Uma despedida, escreveu o João. Acho que me despedi do Ulpiano na última vez que passei na sala dele. Há quase um ano. Foi uma despedida breve, meio em tom de ironia (como qualquer conversa com ele), mas desarmada. Eu tinha lançado todas as minhas fichas, menos uma, talvez a mais importante. Estar disponível a perder. A desistir. Isso nunca foi parte da Thais. Mas não se trata de desistir da academia, muito menos da pesquisa, ou do tema (sugerido por ele...) mas dele em si. Eu não queria mais ficar lutando pra estudar, ao contrário, queria sair da situação de entrevistadora de livros. De fato o Ulpiano contribuiu demais pra isso. Eu aprendi a ler academicamente falando com ele. Mas cansei de ser sempre entrevistada por ele. Eu queria poder acreditar que podia, sem ele. E foi exatamente aí que a despedida se deu... uma resposta ríspida dele (as usual) curta, direta, mas que atingiu o alvo da segurança intelectual - ele me deu a coragem de ver a Thais como a Thais ainda não tinha tido de se ver: livre, independente.

Isso tem feito nos últimos dias com que eu resgatasse a minha relação com os meus professores. Eu fui apaixonada por muitos deles. Não essa paixão de aluno e professor, de idealizações carnais. Mas a do conhecimento da vida e das coisas que eles pareciam possuir. Me lembro agora de um texto do Gibran que fala dos mestres - não se pode entregar as estrelas e tal, mas pode se ensinar a buscá-las, uma coisa assim. Independentemente da poesia e da sabedoria do Gibran, vou ser mais modesta. O meu amor por eles vinha daquilo que eu gostaria de ter, não de ser. Poderia elencar aqui uma lista de desejos, de presentinhos que achei que poderia ganhar deles, diretamente, sem intermediários n(d)a vida. Enganei-me.

Me recordo do Charles no primeiro dia que o vi no Paralelo. Eu era aluna da 6a série (não lembro a letra...) e ele entrou para substituir um outro professor que tinha faltado (sei lá quem era...). Entrou na sala. Aqueles cabelos bem negros e espessos, distibuídos em ondas. Um avental branco, limpinho de tudo, a exceção da marca de gis dos dedos nos botões de cima, meio codificado o seu jeito certinho de se apresentar. Entrou com passos apressados, escondendo a timidez dele. Virou pra sala. Óculos pretos, grossos. Lente forte, parecia. E ali, bem atrás daquele vidro todo, aqueles olhos. Um verde tão profundo, camuflado pelo apertadinho dos olhos que ele tem. Era como se a terra silenciasse. A classe, sempre super bagunceira, emudeceu. Ele cantou. Milton Nascimento, me lembro (um dos meus favoritos) mas esqueci a música. Não importava ali. Era só aquele par de olhos, e aquela voz cantando suave, profunda, meio dando soneca naquela manhã. Mas fiquei estranhamente acordada. Pra sempre.

Ano seguinte ele se tornou meu professor. Eu me encantava. Queria que ele me notasse. Eu adorava ler e escrever. Será que ele percebia? Era um jeito todo meu de continuar acreditando no sonho que os homens, em algum momento da idade (definitivamente não era a que eu convivia mais diretamente) poderiam falar de outras coisas que não sexo e futebol (confesso que hoje isso ainda não se modificou, talvez o critério não seja a idade, de fato). Ele adorava ler, cantava, escrevia e mais do que isso, me apostava fichas de ser especial. A minha carência adolescente de fato não negligenciou isso, ao contrário. E tudo ficava sempre na questão dos olhos dele. Depois saí da escola, mantivemos contato. Lembro que escrevia pra ele umas cartas tão minhas! Minha mãe avisava "cuida, de repente ele acha que você está apaixonada por ele. Ele é casado. A mulher dele pode sentir siúmes". Mas não era isso. Eu gostava da Ieda. Demais. Não tinha essa coisa de ciúmes.

Anos depois eu reencontrei com ele pessoalmente (ainda nos vimos poucas vezes porque ia à escola fazer umas visitas). Ele estava diferente, dava aula em um cursinho. Mais velho. Mais sério, até mais irônico. Mas os olhos não mudavam. Era como se ele pudesse (ou quisesse, pelo menos) se esconder de alguma coisa. O filho dele nasceu. Lindo. Com muitas complicações. Lembro que nessa época eu conheci o Rodrigo, um amigo meu muito amado, amigo do Charles também. Ficamos por perto, demos uma força. Eu queria poder fazer mais do que dar uma força. Era estranho, como se as preces não bastassem. (sempre tive as minhas questões com Deus)

Passaram-se muitos anos e perdemos o contato de novo. Início desse ano me deu uma saudade absurda. Eu queria contar do meu casamento. Queria vê-lo. Mas as respostas dos emails foram tão curtinhas. Quase monossilábicas. Tentei de novo. Parei. Mas fico aqui com os olhos dele na memória. Como seu eu ainda quisesse enxergar através deles. Muito embora tudo o que tenha visto ali foi eu mesma.

O Julio Aquino, meu outro mestre, despertou uma paixão diferente. De fato muito distinta. Tmbém lembro da primeira conversa com ele - nada doce, pra citar o Caio. Nada mesmo. Imaginem, eu cheguei no curso, na terceira aula, sem os trabalhos, mais perdida que cego em tiroteio, botando a banca de intelectual, quase historiadora. Um ohar de cima, à lá se situa menina! só do Júlio...

Eu andava nesse período formalizando a minha relação com as minhocas. A gente estava deixando de ficar pra de fato cair em algo mais sério - um namoro oficial (me preocupa se a gente resolver se casar...) Era fim de curso, eu mais perdida em mim através da academia e dos meus anseios (pseudo?)intelectuais. E o Julio me apresentou o ensinar. De fato não é o ensino. Isso não é um substantivo. É um verbo, transitivo direto e indireto. Já falei dele antes aqui. Eu queria ensinar como ele. Era uma espécie de Charles saído da adolescência (da minha, evidentemente). Ele lia Clarice, Caio Abreu, Manuel Bandeira. Um repertório muito semelhante ao do Charles, mas sarcástico. Tirava uma onda da minha roupitia (corpórea) de intelectual. Adorava. Enquanto o Charles me construía, o Julio me despia. Era divertido pensar nesse binômio entre os dois.

O Ulpiano foi um mestre samurai, como dizia ao Vinícius. Me lembro da primeira vez que o vi, mas não da sua primeira aula. Ele é um misto de Gepeto, com Bethoveen, mais uma pitada de Albert Einstein. Gordinho. Com uma voz linda e aqueles cabelos desajeitados! Ele olhava por cima dos óculos quando ficava indignado com a nossa mortal ignorância, com o sutil O que?!!! que só ele falava. Era mais forte (por fora) e amedrontador do que os outros. Mas muito mais frágil no seu pedestal. Só que eu não via o pedestal. Só ele. Erguia e esticava o pescoço pra ver aquele céu de erudição. Grécia, grego, Roma, latim. Ele era de fato a materialização de um acúmulo de experiências cerebrais (as minhocas são as maiores fãs do Ulpiano!). Eu me apaixonei também. Mas de modo assustador. Tinha medo desse amor. Ele me colocava excessivamente exposta à minha ignorância - e eu me culpava por isso. Me lembro numa reunião em que ele me disse "olha, eu tenho de carreira o que você não tem de idade" e ficava trovando as suas idéias, conceitos, dores e alegrias. Eu adorava falar com ele.

Há um outro professor que merece uma menção bem especial - o Sidney Rodrigues - o Sidão, professor de redação. Ele me deu oportunidade de fazer umas entrevistas com Deus, mas isso merece outra história. Complementou enormemente o processo de dilatação como ele gostava de dizer.

Mas eu começava falando de terapias. Esses três mestres foram importantes professorapias pra mim. Me ajudaram a ter (de volta) uma Thais que parecia perdida no meio das entrevistas de livros. Como disse, eu parei de fazer entrevistas. Fui buscar a minha própria biblioteca interior, muito na onda da frustração oferecida por eles. E o Julio dizia, só a frustração promovida pelo professor é capaz de oferecer caminhos de descoberta ao aluno. Sou grata. Me ajudaram a entrar no meu próprio trem, com bagagem própria.

E fico olhando a janela, lá pra trás, meio nostálgica, vendo as coisas ficarem pequeninas na memória da visão, dando uma dorzinha no peito, com saudades de todos eles.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acho que vou passar a noite toda lendo o seu blog. Mais coisas que eu gostaria de ter dito e nunca consegui.

Nunca consegui olhar nos olhos do Júlio, tamanha era a admiração que eu tinha por ele. No último dia do curso dele entreguei um livro do Tenessie Willians para ele e acho que ele nunca leu e eu nunca tive coragem de perguntar.

O Ulpiano faz isso com a gente desperta o que há de melhor de uma maneira muito dolorosa, gostaria de ter tido mais contato ter uma história assim para contar.

Sempre encarei os meus professores como deuses, nunca consegui falar com eles da maneira que gostaria e acho que isso se reflete no meu modo de lecionar, nunca me aproximo muito dos alunos.

Beijos.