quarta-feira, agosto 23, 2006

clareando


Esses dias todos eu tenho pensado na minha irmã. Clara. O nome dela diz muito. Dela. Temos alguns anos de diferença e sempre o status de mais velha me rondou.
Nunca tivemos uma relação convencional de irmãos, ao menos no conceito da minha mãe. Brigamos muito (ainda), mesmo depois de eu ter saído de casa.

Esse episódio, aliás, merecia alguns escritos aqui. Desde o ano passado, quando compramos o apartamento a questão do dia era sempre porque eu AINDA estava morando lá. Ora, afinal o quarto (já) era pequeno demais para nós duas. Há tempos, desde 1985, talvez. As disputas eram (excessivamente) calorosamente femininas. Na pauta do dia estavam roupas (claro!), arrumação do quarto - incluindo livros, etc... - e, para não deixar de mencionar, o fuso horário. A luz do abajour não poderia, de modo algum, ficar acesa quando a outra dormia.

Mesmo com a pauta desenvolvida e aprofundada eu me sentia às vezes em meio ao conflito do Oriente Médio... quando tudo parecia se tranquilizar, quando os processos diplomáticos (mau)bem sucedidos se concretizavam... é. Um novo ataque terrorista se configurava: elemento surpresa, barulhento, violento e mesmo (talvez) irreparável. Enfim. Causas do conflito: os dois lados estavam certos, e nenhum tinha razão.

O momento mais (tragi-)cômico foi no carnaval desse ano. Me mudava pra minha nova casa, com uma mudança homeopática, de conta-gotas. Para que os efeitos colaterais não fossem tão fortes. Quando finalmente encaixotei as minhas roupas (será essa a causa verdadeira, então?) e apetrechos (o abajour eu já havia levado embora!) ouço o seguinte comentário da digníssima, entrando no (ex-nosso) quarto: como assim? o que é isso? Estranhei a pergunta e respondi, num tom "ONU" que aquela era a minha mudança. Mas QUANDO você vai embora? Hoje.

Recordo bem que ela se virou, daquele jeito que só ela faz, puramente indignada, teatral, performática. Com um cabide velho nas mãos. Minha mãe fez um sorriso de canto de boca e olhava por cima do nariz. Já tinha entendido o código: como assim pergunto eu! Foi só isso pra (re)iniciar o conflito... nem sei de que canto do mundo mais. Uns dois gritos de indignação e a frase do ano: mas você não pode ir embora assim, sem mais nem menos. afinal, eu preciso me preparar para esse momento de despedida, de rompimento. Uma irmã não sai assim de casa. Demorei para absorver o texto shakespereano. Shakespeare é difícil mesmo... O intrigante ali foi o assim. Como assim? Minha mãe riu. Esse era portanto um sinal amigo de que aquilo ali era pura cena?

Não exatamente. Quando pensei em rir também - estava chocada! - a Clara desmonta num choro super incontido, verdadeiro. Paralisei.
Ok, Thais, não se preocupe, isso vai passar, ela está frágil e cansada. Não se acanhe pelo choro. Ok.

Estava quase nesse ponto. Mas o sinal amigo da minha mãe havia se transformado em um chorinho discreto, tímido. Meus "oks" perderam a utilidade. Como assim era a palavra de ordem!

Tentei em meio àquela convulsão feminina de troianas chorosas me centrar. Não havia motivo para isso. Ora, a Clara passou pelo menos 3 meses me expulsando de casa. Ela não deveria comemorar? dar uma festinha de (re)inauguração de quarto? O MQI (Movimento do Quarto Independente) havia vencido. Uma rendição, sem luta. Sem pautas.

Mas foi aí que a Clara exerceu seu poder dissimulado na indignação... As coisas, de fato, se clarearam... Não se tratava de disputas, de movimentos. Era o desmascarar mais terno. Frágil. Uma outra rendição. Um atestado de irmandade. Fraternidade, melhor dizendo...

E ali, no meio do choro (meu e dela) as cortinas de lágrimas revelaram o que a gente tinha de mais bonito - a cumplicidade. Essa se dá sempre no silêncio. Na ausência mais presente.

Minha irmã sempre clareia as minhas limitações. Mostra as feridas mais escondidas do meu orgulho, do meu egoísmo. Sempre aponta, com maestria, os meus defeitos (ninguém conseguiu essa precisão cirúrgica ainda). De certo modo acho que dou essa mesma contribuição pra ela.

No dia dos pais, fizemos um pic-nic com a família. Eu estava particularmente nostálgica dessa convivência super familiar. É bom sentir saudade disso. Eu observava todos ali, cumprindo uma profecia de estranheza e estranhamentos... quase antropológica.

E é claro que o conflito com a Clarisbela apareceu (eu a chamo assim quando me refiro à nossa intimidade). Motivo:
1 - dicionário de inglês recalcado na insistência milenar dela. Há meses não liga pra mim, mas fez as pazes com o Super 15 pedindo o dicionário.
2 - nem me lembro o que...

É isso, ela revela a minha limitação de aguentá-la. Por que? Porque somos profundamente (cúmplices) parecidas.

Mas eu me pergunto agora porque mesmo eu escrevo sobre a Clara. Ontem, numa sessão romântica de leituras de poemas, Juliano desentocou um do Vinícius (de Morais) sobre o Manuel Bandeira. O termo: áspero irmão me trouxe a Clara. Sem pestanejar.

Por que?

Ora, óbvio. Uma presença áspera, que te rala todo se você for desprevenido. Esse misto de admiração, inveja, amor, saudade, cuidado, disputa, desejo de liberdade. Coisas que só a Clara faz por você. Sem mastercard (mas cuidado se tiver um!). Só clareia quem você realmente é... com aquelas canções expressas na sua voz mais linda que qualquer uma outra dessas famosas. Ela me basta. Energética. Incontrolável. Musicou a minha vida pra sempre. Sinto saudade do barulho que ela fazia desde o elevador, anunciando os sinais da sua chegada (sempre) triunfal. Retumbante.

Tenho saudade do conflito. Do medo, da raiva e do arrependimento que o coração trazia. Sinto falta do riso dela - mesmo depois da cirurgia da voz. Das coisas porcas que ela fazia pra me irritar e tirar um barato. Saudade dela ocupando sempre (SEMPRE) o telefone e o computador. Das birras. Das exigências. Das reclamações e do sentimento de injustiça que só ela tem. Saudade das coisas feias que ela me dizia - e que ainda doem aqui no canto -, das vezes que eu abria a porta e a surpreendia com as minhas roupas. Puta merda!

Saudade da luz dela. Da manha. Da gente. Dos pedidos tímidos de desculpa e dos choros contidos quando os tapas atravessavam a nossa armadura orgulhosa. Dos emails apaixonados. Saudade de ser clara por dentro, com ela.

Mas essa distante convivência vem clareando essas claridades, difíceis de se ver, pelo ofuscar das obviedades.

Te amo, claro. Clara.

T

4 comentários:

Anônimo disse...

Acho que não é peciso escrever mais nada né... as lágrimas aki já disseram tudo...

Te amo... do nosso jeito,com todas as diferenças, mas te amo...
BJO

Anônimo disse...

Tem algumas coisas que lemos e pensamos, outras que lemos e comentamos, outras que lemos e sentimos, e outras que lemos e estamos...
Essa última se aplica.
Ler isso me trouxe a mesma sensação da convivência com vcs,por vcs. Talvez um dia venha a escrever a convivência com vcs por mim mesmo.

Anônimo disse...

Pôxa, tantos anos convivendo na faculdade e nunca soube que você escrevia assim!!! Nossa esse texto me fez ver muitas coisas que vivi com minha irmã, também mais nova. E estou ainda emocionada. Um grande beijo.

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado