quinta-feira, julho 03, 2008

trombadas

Domingo. Era por volta das 11 da manhã eu acho. Estava num vai e vem de gatos e reforma e material de construção. Juliano me chama pra olhar pra trás na saída do prédio... Lina na porta.

Mal pude acreditar que era possível depois de mil olhadelas na vila a gatinha surgiria debaixo do carro estacionado empacando a minha entrada. Me abaixei e só senti o coração acelerar. Era uma sensação de ter de volta algo que, de certo modo, nunca tinha sido plenamente meu. Um insaciável satisfeito. Recheado. Mas com mil buraquinhos pelas bordas do peito com os arranhões que só o apego - e seu irmão mais novo, birrento, o desapego - pode ter.

Chamei a gatinha. Juliano ficou ali parado. Havia outro com ela, um dos muitos com quem ela dividia a casa. Ela olhou. Chamei-a de Lina mesmo. Era o que ela era pra mim. Ela veio. Miou. Peguei no colo. Apertei ela gostoso. A gente se reconheceu. Ela - como de hábito - esfregou o rostinho no meu. Só consegui dizer um "ó" terno e manhoso e retribuir. Pedi ao Juliano que tirasse umas fotos da gente. Não tive como pedir isso dia que ela foi.

Fiquei pensando em quantas vezes eu a procurei, a chamei em pensamento para ela me "surpreender" na porta. Achei graça dessa coisa toda infantil e de menina apegada. Fiz carinho, disse que ela era importante e que eu sentia saudade. Acho que ela entendeu. Estava grandona, mas mais aculturada. Engraçado como eu reparei nisso. Um sentir, cheio de sutilezas. Eu também não era mais a mesma. A perda e a separação provocam coisas na gente. Coisas porque isso não se define, não se nomeia. Mal consegue-se sentir.

Soltei ela no chão. Observei. Ri. Ela rodeou. Miou mais um pouquinho e eu adorei. Era um sinal da gente como "estamos aí, a gente vai se trombando". Naquele momento só nosso eu fiquei pensando na Lina como a vida. Ela vai, vem, volta e e vai de novo. Sem a gente controlar. Sem a gente querer. E nesse ir, vir e voltar há transformações sutis dentro da gente. Aquelas unhas arranham umas entranhas estranhas de nós mesmos. Mostram os nós, os arrepios e medos, os engasgos e até os miados mais disfarçados cheios de charme que escondemos nesse silêncio de existir. Fiquei ali agradecendo a ela por isso, por me presentear com a vulnerabilidade, com a fugacidade da experiência, da alegria, do ter, do amar. Do sentir. Fiquei com isso. Peguei ela no colo de novo. Era um tchauzinho mais conformado de nós duas - mais do que no dia que ela arranhava a porta de vidro na casa dela - mais inteiro também. Mais adulto. Sofrido, mas cicatrizando. Depurando algumas verdades sobre esse nosso gatear...

Olhei pra frente. Um barulho no portão da vila. Era a Fran atrás dela, preocupadíssima dela ter fugido. Não minto que eu quis que fosse verdade. Quis me tornar a mulher invisível ali com a Lina no colo e sumir do mapa com ela. Como fazem os super-heróis. Ri sem graça tentanto esconder esse desejo meio gato-traiçoeiro-apego. Ela me viu e riu. Havia na gente essa cumplicidade da vida tirando e dando coisas ao mesmo tempo agora. Tão rápida e intensamente que o máximo que a gente consegue fazer é se olhar - rapidamente - e rir. Desajeitadamente. Disse que a Lina estava aqui, bem. Bastante óbvio para o meu flagrante de quase-rapto. Ela contou que a Lina tinha aberto a janela da sala de jantar e fugido. Ri por dentro. Quase comemorei.

Mas a gatinha miou e me dei conta que os meus delírios de Marvel estavam com os segundos contados. Soltei ela no chão. Ela voltou pra mim. Ficou. Rondou. Conversamos um pouquinho. A Fran me desperta tanta ternura e generosidade, mas ao mesmo tempo ela me tirou a Lina. Como essas coisas podem andar juntas? Olhei de novo a Lina. Comia grama daqui e dali, olhava. Miava. Ouvi ela contar dos outros gatos. Não tive vontade de contar dos meus. Mas intimamente agradeci a ela. Era um experienciar de não-entender que eu vivia. Aliás me dei conta que eu precisava viver não-entender mais vezes. Que nos últimos anos essa ansiedade por entender coisas me deixaram quase de concreto. Um cérebro metido a besta quase tomou conta. Mas deixei que a luta fosse bem sangrenta e as cicatrizes ainda passeiam pelo meu corpo. Subitamente a dor da perda se foi. Respirei. Foi bom olhar pra ela e deixá-la livre. Não era bem desapegar. Mas soltar a linha - elástica - que nos unia. Na hora me dei conta que nem todos eu amarrei com elásticos. E que mesmo ela foi difícil trocar as amarras. Me deu pressa de fazer isso logo. Listei rapidissimamente todos os que eu queria bem amarrados a mim. Me perdi. A lista era grande demais e os meus dedos desajeitados não iam dar conta disso assim tão rápido.

Juliano me chamou e me dei conta. Respirei de novo. Olhei de novo pra Lina. Fiz uma prece agradecida pra ela. Por ela. Pelo que ela trouxe pra mim. E generosamente deixou em mim, não levando com ela. Olhei pra cima como querendo ver os dois novos gatinhos que estão em casa. Fred e Filó. Disse em silêncio que uma hora eles iam se ver. Meio parafraseando o filme Promesses.

Há dois dias estou em Florianópolis. Choveu hoje e passei a maior parte do dia trabalhando. De repente vi que a imagem da Lina no computador tinha sumido. E que eu tinha acabado de ligar para saber dos gatinhos no hotel da clínica. Achei meio mágico que isso tivesse acontecido assim ao mesmo tempo. E gostei da sensação. Ontem, caminhando pela praia, tive uma epifania desse ir e vir das ondas, da Lina, da vida, dos (não) meus. E como a gente pode criar retinas mais coloridas para deixar esse banhar-se vida tomar conta da alma. Sem se esconder. Sem se amarrar. Quis ir com as ondas ontem. Naquele púrpura de fim de tarde que eu adoro. Que é tão cheio de mensagens cifradas ao espírito. Que revela essas ranhuras de viver sem ser, de se arrastar pela gente mesmo. Molhei a mão no mar pra limpar a areia. Foi que eu vi... os arranhões que a Lina deixou na minha mão no dia que ela foi estavam cicatrizados. Só aquela manchinha rosa, como o céu e o mar. Enchi os olhos d'água e de fato, não entendi, senti. Chorei miudinha sei lá porque. Um choro sem lágrimas. Fiquei tímida diante desse oceano salgado na minha frene. Cheia de não-entender, senti, sendo, entregando ao Tempo esse viver-vivo e misterioso. Coloquei a saudade nas asas das gaivotas e pedi que elas levassem ao mar. Uma hora as ondas trazem de volta. Pra gente curtir de pertinho a saudade e novamente deixar ir. Ir, vir, voltar, diluir, sem cicatriz, só os dedos róseos da Aurora no coração...

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