sexta-feira, março 09, 2007

recebendo-se

Eu comecei a rabiscar umas lembranças de Santo Amaro. São muitas. Especialmente dos tempos de escola. O Colégio Paralelo.

Não há uma cronologia na minha escrita, muito embora eu reconheça uma ordem na minha memória. O ponto aqui é que as lembranças começaram a aparecer, nada organizadas, depois que colocaram uma foto minha como propaganda da escola. Uma coisa é você aparecer num folder, outra, no outdoor, publicamente.

De repente as pessoas passaram a me achar, quase que sobrenaturalmente, da noite para o dia... e me encontraram. Voltaram dos túneis, das esquinas, das quadras de handball, dos dias de provão. Tanta gente... reencontrei vizinhos, amigos, namoricos, pseudo-inimigos... Não sei até que ponto a gente pode dizer que tem inimigos na adolescência. Honra parece ser mais forte do que qualquer outra coisa. Talvez tenha passado.

Mas o fato aqui é que há quase um mês atrás eu recebi um email. Vindo de um enterro... Maurício. Eu reli algumas vezes o título/remetente... era ele mesmo. Como assim? O Maurício depois de 15 anos ainda lembra de mim? Não fazia sentido.

O Maurício... era um menino repetente da 6a série. Usava óculos e fazia o tipo gordinho. Mas nem de perto era um tipo cdf. Nem de perto mesmo. A gente se conheceu em 1991. Faz muito tempo. Eu tinha ainda 11 anos, e ele 13. Eu era uma menina grandalhona, com 1,60 de altura e o corpitio desenvolvido o suficiente para me sentir deslocada com as meninas da minha classe. Era grande demais. Ótimo para os jogos de handball, basquete e vôlei. Não para o ballet, nem para os bailinhos da sala. Ninguém costumava dançar comigo, eu sobrava algumas vezes com a vassoura e fazia piadas engraçadas pra esconder o meu desconforto.

O Maurício morava perto da minha casa. E tinha um irmão, o Fábio, acho, que era um dos sucessos da escola. Nunca fez o meu tipo. Mesmo. Eu adorava meninos (e ainda adoro...) que fazem o gênero inteligente-sensível. Nunca fui fã dos jogadores de bola, o típico macho-alfa. Combinação super perigosa. Armadilha total. Mas vamos adiante. Maurício morava num conjunto de prédios próximo à minha casa da Monsenhor Magaldi. Vanessa ia almoçar em casa e às vezes voltávamos no ônibus juntos. Eu era tagarela (ok, ainda sou) pra caramba e sempre puxava papo com as pessoas. Ainda que escondesse aí a minha maior timidez. Mas me recordo que fui quem começou a puxar papo com ele. Ficava sempre mal com a possibilidade de ter colegas deslocados e curtia fazer um social.

Eu não sei como aconteceu exatamente... Mas de repente o Maurício começou a passar de bicicleta na frente da minha casa. A Vanessa é quem tinha descoberto as frequências dos passeios dele, eu era muito elétrica e desligada. Não entendi direito na hora. Na minha cabeça (de certo modo até hoje...) era difícil imaginar que alguém poderia se interessar por mim. Nem de perto eu fazia o tipo das mocinhas bacanudas da escola. Não era exatamente bonita, com cabelo crespo, nariz grande e olhos grandes. Nada bonequinha. Sofria um bocado porque os meus colegas, e alguns dos meninos que eu gostei adoravam as meninas de franja. No meu caso, nem pensar. Ia parecer um poodle com esses cachinhos...

Comecei a reparar no Maurício. Atrás daqueles óculos e daquele jeito meio desengonçado-tímido eu comecei a notar que ele reparava em mim. Carências à parte a gente teve um namorinho. Ele passava em frente à minha casa várias vezes durante as tardes (quase desconfio hoje por que ele repetiu no ano anterior). Eu fazia lições olhando a janela da sala. Era um bairro bem tranquilo ainda para se andar de bicicleta. A Vanessa e eu nos escondíamos atrás da cortina para contar quanta vezes ele passava. Da janela do prédio dele era possível ver a janela do meu quarto, que dava de frente para um pequeno terraço, e a gente brincava de se ver por detrás das roupas.

Era tudo muito diferente. A gente se escondia mais. Mas nem por isso se protegia, ao contrário eu penso. O comportamento infantil da gente era mais denunciador do que qualquer coisa. Mas ficava uma coisa de mistério ali. Como assim eu gostava dele? O que era exatamete gostar naquela idade? Tanta curiosidade, tanto medo. Eu já tinha 12 anos quando a gente teve o nosso namorinho. Acho que foi a primeira vez que saía do platonismo. Apesar que eu adorava as minhas paixões platônicas. Ficava triste, sentia saudade. Medo. Engraçado como as primeiras experiências do amor deixam a gente desbaratinado. As coisas ganham sentidos complicados, inexatos. A gente fantasia vivendo. E vive fantasiando.

No email que ele me escreveu me fez lembrar de coisas que eu não me recordava... Disse que escrevia cartinhas em inglês para ele estudar (meus namorados sempre tiveram problemas com língua estrangeira, a exceção de dois... o Juliano, ao contrário...) Olha só que coisa mais meiga. A ternura que a gente desenvolve nessa época pode marcar o nosso comportamento pra vida toda. Eu não lembrava de muita coisa. Mas lembro bem dos meus pais me enchendo a paciência porque ele passava as tardes andando de bicicleta lá e de todo o receio de que fizéssemos alguma coisa. Pãtz... tenho medo de quando for mãe.

Fizemos um trabalho sobre a hípica de Santo Amaro. Uma maquete. Um grupo de lunáticos. Eu e o César. Tinha sido meu namoradinho no ano anterior. Ganhei um ursinho amarelo dele! César era tão - ou mais - neurótico e perfeccionista do que eu... A gente era de tudo passional, pirava. Brigava e disputava poder... fêmea e macho alfa... pãtz. Mas sempre ficamos bons amigos. Soube que ele casou ano passado.

Mas as reuniões da maquete eram mais motivos para eu ver o Maurício e comer os docinhos que a mãe do César fazia do que qualquer outra coisa. Foi um tempo muito bom. Agradeço ao Maurício por me devolver essas lembranças. Estavam desbotando por falta de conservação adequada. O proibido, o frio na barriga, a falta de ar. Tantas coisas... tudo nesse universo inocente que tende a desaparecer nessa idade. E uma hora some. Não nos pertence mais.

Um dia - eu já conhecia o Ricardinho, éramos 3 bons amigos, os 3 - ele parou de falar comigo. Liguei para ele do orelhão em frente à casa do Ricardinho (a gente não tinha telefone em casa), com o Ricardinho do lado, para quem eu perguntei desesperadamente porque o Maurício estava esquisito. Ele não sabia. Eu não sabia. 15 anos depois descubro que o Maurício também não sabia... Tomei o meu primeiro fora. Doeu muito. Puxa, que agulhada no peito. Orgulhosa, eu decidi que não ia chorar. Ora, como assim eu ia chorar? Não chorei. E por causa dele? Sem chance... Mas derramei umas lágrimas tímidas, perto do Ricardo que me ofereceu Coca-Cola e chocolate na casa dele para me acalmar. Acho que fo ali que eu descobri os efeitos mágicos da cafeína misturada ao chocolate. É o maior unguento que a modernidade inventou.

Nunca mais nos falamos. Anos depois, ele mudou do bairro e eu fui jogar o coração em outras trincheiras. Arriscosas. Um dia, em 94, quando ia de carona para o Mackenzie com o meu pai, quase atropelamos o Maurício no Largo de Pinheiros. Fiquei com aquela imagem durante muito tempo, sem entender aquele desfecho maluco.

É louco como a gente se magoa. Se deixa perfurar e vive com o sentimento de defesa depois. Constrói a torre, em silêncio, dentro da gente. Ele foi mais uma das peças importantes para compor o complexo sistema da baixa auto-estima adolescente. Que duraram até a faculdade. Ou depois. O fato é que esse "retorno de saturno", "de jedi" ou o nome que se quiser dar me trouxeram de volta uma moça que achei que tinha deixado no armário do quarto dos fundos da Monsenhor Magaldi. Desempacotei a moça.

Coloquei ela de volta nas quadras, na sala de aula. Nas reuniões de trabalho. Me divirto com a minha menina que não desapareceu. E rio com ela dessa nova Srta T que surgiu, que nasce.

Que delícia a gente se receber de volta, em papel de presente. E sem medo de olhar naquele espelho embaçado, perturbado pelos olhares atentos da gente mesmo. Que gostosa a sensação de ser lembrada... apesar...

E vou desempacotando as lembranças, colocando-as no meu novo arquivo... e dando uma espiadinha lá de vem em quando...

Um comentário:

Anônimo disse...

amada, como a gente é e foi parecido - ao mesmo tempo tímido e falante; baixa auto-estima e muito orgulho. enfim, voce sabe, a gente sabe...